Já havia sentido essas dores no peito antes, mas aos vinte e poucos
anos elas são diagnosticadas mais como excessos do que falências. Portanto, uma
nova viagem não deveria me causar mal. E fui.
Uma casa esquisita em um condomínio esquisito, mas com um pouco que
paz que, em último caso, seria muito útil. Se não, quando voltasse estaria em
um cardiologista na primeira hora após retornar.
Aproveitando a noite, não me lembro bem, estou em uma danceteria, sem
me importar com quem está comigo ou o que está tocando, vejo ao longe uma
garota e me aproximo dela. Ao se virar para falar comigo vejo algo peculiar que
só percebo realmente quando ela abre a boca para falar comigo. Duas bocas bem
menores se abrem juntamente na parte mais alta de suas bochechas. Aquilo me dá
um enjoo e me leva para longe. A “Moça das Boquinhas” não me segue e não a vejo
mais.
Porém, dou de cara com uma mulher, roupa vermelha, pele clara, olhos
fortes e decididos, o cabelo negro da cor da morte, mesma cor de seu batom.
Acordo de madrugada em sua cama, deixo-lhe um beijo e rastejo para fora.
Na volta de casa, estou na parte de traz das casas e os quintais são
conjugados, separados por pequenas muretas de madeira e, após passar pela
última delas, um rapaz sentado, visivelmente entorpecido, tosse e me olha. Por
algum motivo eu estou carregando meu narguilé comigo e ele me oferece uma das
peças do seu, que, coincidentemente me faltava.
Na noite seguinte acordo novamente nos braços da Dama de Vermelho com
a boca manchada por seu batom preto. As lembranças são nubladas e não as
entendo bem.
Novamente a volta pelos fundos, novamente o Rapaz do Narguilé, e dessa
vez um convite para ficar e participar de uma festa. Com um pé atrás, recuso.
Mas a porta dos fundos se abre e vejo rostos muito familiares, antigos amigos
de tempo da faculdade. E outros desconhecidos. Entro.
Estou totalmente limpo e nego veementemente a oferta de tomar mais do
que um refrigerante. Eis que o Trapaceiro entra em cena, eu o devia ter
descoberto antes, e me serve um refrigerante. Eu tomo e, como prova do meu
erro, vejo sedimentos no fundo do copo. Minha visão se turva uma, duas, três
vezes até se estabilizar. Meu corpo amolece por um segundo e meu peito dispara
para compensar. De repente me sinto bem, mas algo está errado. Meus amigos
ressaltam a coincidência de eu conhecer a Dama de Vermelho, por ter estudado
(?) com eles.
Um segundo depois me sinto puxado para traz e, quando olho, vejo
aquelas duas infames, famintas, erradas, bocas que não deveriam existir. E sua
dona. A conversa é tão direta quanto eu posso ser, dando voltas e voltas. A
Dama de Vermelho, e um estonteante vestido vermelho para atrás dela e eu peço
que espere um segundo. Ela sai e mantem uma distância onde posso vê-la, mas não
ela a mim.
Tento me desconversar com a Moça das Boquinhas, mas ela avança em uma
velocidade impressionante e me beija. Não, ela toca os meus lábios e eu me
desvencilho. Ela chora, xinga e some. Procuro por ela e tento explicar que não
poderia fazer isso com a Dama de Vermelho, assim como não o faria com ela, nem
com nenhuma outra. Ela então promete não me seguir mais.
De repente, todas as mulheres da casa, que agora era extremamente maior,
estão usando vestidos vermelhos. Meu olhar corre imediatamente para onde estava
minha Dama de Vermelho, mas só encontro os que a cercavam. E o Trapaceiro,
agora gordo como um porco.
Ele me indica o baile de vermelho e, sem pensar, busco pela casa
inteira, em todos os andares, por algum sinal daqueles lábios pintados pretos.
Mas todos os vestidos estão vermelhos, a decoração da casa está vermelha, não
sei onde mais buscar.
Eis que então me encontro no último andar e vejo uma sala retangular
no andar de baixo, como que através de um mezanino. Eternamente grande e
infinitamente povoada. É difícil entender o movimento lá embaixo, mas são
mulheres de branco, dançando uma música que não consigo ouvir. Como último
recurso, e desesperado, chamo a primeira pessoa que passa do meu lado. Aquelas
boquinhas me enojam, mas ela é a única que também viu a Dama de Vermelho, e eu
não vejo mais ninguém da festa, apenas o mar de mulheres de branco dançando.
Como se ela soubesse desde o princípio e estivesse apenas esperando,
me aponta o lugar exato onde eu vejo, quase escondido, um pingo vermelho em
meio à multidão.
Em um segundo estou de frente para aquele vestido vermelho, mirando,
febril, aqueles lábios pintados de preto. Não espero que ela abra os olhos e a
beijo. No segundo em que o faço, ela tenta se desvencilhar, mas para ao abrir
os olhos e me reconhecer. Então me beija. Seu batom cor de morte borrando minha
boca, sinto como se grades me cercassem. Abro os olhos e elas existem. A Dama
de Vermelho abre os olhos e eu vejo desespero em seu olhar.
Ela sente meus lábios frios, meu corpo gélido, meu peito parado. E
grita.
A música para e meu corpo cai morto.
Continuo olhando aquela cena.
Meu beijo com gosto de defunto.
Meus lábios borrados de preto pela morte.
Aquelas boquinhas famintas olhando de longe sem emoção.
O Trapaceiro, gordo como um porco, rindo.
O gozo da carne traçando a linha de tempo dos vivos e a linha de chegada
dos mortos.
Sorrio, por fim.
Foi um beijo inigualável.
A Dama de Vermelho, dos olhos forte e firmes, agora me olha com
tristeza e chora.
Abro os olhos e estou nos braços dela novamente, deixo-lhe um beijo e
rastejo para fora.
Nunca mais volto aqui.
- Baseado em um conjunto de sonhos que venho tendo a uma semana e se completaram essa noite
(PINHEIRO, João Pedro C. - 21/11/2012)